Leitura conjunta: minha experiência com Neuromancer

Ano passado enfrentei o prazeroso desafio de ler a trilogia tida como o marco zero do gênero cyberpunk: A trilogia Sprawl.

O desejo de beber da fonte e presenciar o nascer das ricas características do cyberpunk me fizeram enfrentar a escrita provocadora do bendito William Gibson e, para compartilhar dessa jornada árdua, convidei a incrível Glícia Nathália .

É inegável a dificuldade natural em superar o primeiro capítulo de qualquer obra do Gibson. Ora extremamente descritivo, ora com ausência completa de informações, o autor faz com que o leitor tenha o mesmo nível de informações que o personagem da cena teria. Isso faz com que, muitas vezes, estejamos completamente perdidos e sequer saibamos quem estamos acompanhando até a segunda ou terceira página do capítulo. Alguns críticos ponderam isso como um defeito, outros como um fator proposital e fundamental das obras do autor.

O Sprawl, um mega continente citado e explorando ao longo dos três livros (a saber, Neuromancer, Count Zero e Monalisa Overdrive) é um aglomerado de tecnologia, violência, tramas complexas e personagens ainda mais complexos e carismáticos. Cada cena requer um poder de abstração e interpretação do leitor que, muitas vezes, terá que reler páginas inteiras para se aproximar do que o autor quis expor ali.

Talvez eu esteja sendo prolixo em criticar a forma como o autor escreve, embora esteja fazendo isso para evidenciar o maior degrau de dificuldade que, uma vez superado, abre um horizonte inteiro de possibilidades.

Gibson não é perfeito. Podemos perceber como sua escrita amadurece de Neuromancer para Count Zero, se tornando mais clara e necessitando de menos esforço do leitor para progredir pela trama. O estado da arte se materializa no terceiro livro, Monalisa Overdrive, com uma conclusão inesquecível e aberta a inúmeras interpretações.

Uma das vantagens em realizar essa leitura em conjunto é compartilhar das interpretações e chegar a um senso comum sobre determinadas cenas, em destaque aquelas que ocorrem dentro do ciberespaço.

Repare que deixei para tocar na pérola da trilogia apenas agora, ao final do texto. Os personagens, com destaque para a inesquecível Molly Millions, são inesquecíveis, embora alguns “rompam” conosco repentinamente e nunca mais retornem. A própria Molly, personagem recorrente nas obras do autor, reaparece, completamente mudada, no último livro, matando a saudade visceral que nos deixou após o fim do primeiro volume. Os protagonistas, Case, Bobby Newmark e Mona, são bem construídos ao ponto de conquistarem um lugar afetivo no coração do leitor.

William Gibson, eu te odeio do fundo do meu coração, por me fazer sofrer e gostar disso.

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